Abril vermelho. Memória de um massacre impune.
Por Antonio Cechin e Jacques Távora Alfonsin
No dia de hoje, 17 de abril, cumprem-se 13 anos do massacre praticado pela polícia militar do Estado do Pará, em Eldorado dos Carajás, que resultou na morte de 22 agricultores sem-terra, mais 70, entre mutilados e feridos. Condenados judicialmente, como responsáveis pela chacina, o Coronel José Mario Colares Pantoja e o major José Maria Pereira de Oliveira, às penas de 228 anos e 154 anos de prisão, respectivamente, os dois continuam livres, por força de recursos que impetraram junto ao Superior Tribunal de Justiça em Brasilia.
Como nos protestos públicos que ocorrem frequentemente em outros Estados do país e aqui no Rio Grande do Sul, a explicação justificativa dessa barbaridade foi a de que as vítimas estavam bloqueando uma estrada, no caso, a PA-150...
Esse tipo de protesto, todavia, que atrapalha um trânsito de veículos, mais não visa do que desbloquear um trânsito de pessoas rumo a uma terra prometida em lei!, tanto no Estatuto da Terra quanto na Constituição Federal (arts. 184 a 191), lei essa que funciona mesmo, e de maneira a mais violenta, com raríssimas exceções, exatamente contra quem se atreve a reivindicar os efeitos materialmente jurídicos, por ela previstos.
Como se sabe, a versão manipulada de um efeito como se ele fosse a verdadeira causa de um determinado fato, é um dos ardis mais usados pela formação daquilo que a ideologia tem o poder de criar como “falsa consciência”; no caso, o protesto público em favor da reforma agrária deixou de ser a causa real, dando lugar ao bloqueio da estrada como causa justificativa da repressão. Assim, para o poder oligárquico da elite agrária do país, e para grande parte do Poder Público que lhe dá cobertura, o injustificável atraso que se verifica na tramitação judicial do processo que visa apurar a responsabilidade de quem comandou o massacre é de todo conveniente, pois não só garante a impunidade de quem o praticou, como, pelo simples decurso do tempo, relega tudo ao esquecimento coletivo.
O chamado abril vermelho, portanto, que leva para as ruas e estradas tantos agricultores sem terra, não quer que essa manipulação consagre um tal esquecimento, esse sim, criminoso, flagrante violação dos direitos humanos das vítimas, aí não só as do iníquo massacre de Carajás, mas desse outro, que não permite a realização da reforma agrária e do acesso à terra de milhões de brasileiros pobres.
Engana-se quem pensa que um absurdo como esse seja coisa exclusiva do Pará. Aqui mesmo no Rio Grande do Sul, todo o ano de 2008 e os poucos meses decorridos de 2009, comprovam que o Ministério Público persegue tenazmente as/os sem-terra com um apoio extraordinariamente poderoso, pela ordem, dos latifundiários gaúchos, do Poder Executivo e do Judiciário. Embora obrigado a recuar do propósito inicial de “dissolver” o MST (!), coisa que pode ser comprovada documentalmente pela ata de uma reunião do Conselho Superior do mesmo Ministério, os promotores encarregados de investigar o Movimento e processá-lo o que não conseguiram no atacado, estão tentando fazê-lo no varejo. “Despejos” violentos de acampamentos, buscas e apreensões, publicação de relatórios pertencentes às suas lideranças, apanhados nessas buscas e revistas, tudo com apoio ostensivo e violento da polícia militar do Estado, culminando agora com o fechamento da escolas itinerantes do MST, isso tudo visa, senão dissolvê-lo, desmoralizá-lo ao ponto de retirar-lhe todo e qualquer apoio não só a ele como a qualquer política pública de reforma agrária. Com tal estardalhaço repercutindo na mídia, se “compensa” o escândalo vergonhoso de Carajás.
Essa agilidade toda ocorre quando o Ministério Público estadual, ou até a Procuradoria da República, no âmbito de suas competências, são provocados, para apurar as truculências e maldades praticadas pela polícia militar contra os agricultores sem-terra? A iniciativa é tão veloz contra os latifundiários que, desobedecendo a lei, bloqueiam (!) a porteira das suas terras, não permitindo vistorias do Incra sobre seus latifúndios, para medir os índices de sua produtividade? Alguma ação civil pública é movida para desbloquear a estrada (!) de modificação de tais índices, defasados há décadas? Alguma outra ação foi proposta pelos promotores para conferir as licenças que estão sendo concedidas às transnacionais plantarem eucalipto pondo em risco nosso meio-ambiente? Compare-se tudo com o tempo necessário para uma ação de desapropriação de latifúndio rural chegar ao fim e permitir acesso dos sem-terra ao que eles tem direito e ela visa obter.
Parece mentira, mas uma constatação como a de Victor Nunes Leal, um ministro do Supremo Tribunal Federal, cassado em 1969 pelo AI-5, pode recomendar cuidado a quem pensa que acontecimentos como do de Carajás ou como os que atualmente agridem os sem-terra no Rio Grande do Sul, seja coisa somente do passado. Em Coronelismo, enxada e voto, denuncia esse defensor dos direitos humanos a estreita ligação que as oligarquias agrárias guardam com todo o aparelho de repressão que o Estado mantém, como uma verdadeira “magistratura oficiosa, reforçando o governismo dos chefes locais” para “fazer justiça aos amigos” e “aplicar a lei” aos adversários.” ... (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997, p. 242).
Que o chamado “respeito à lei”, portanto, tão apregoado pela “moderna inquisição” montada contra os sem-terra, não coincide sempre com a justiça, isso sabe bem o poder econômico do qual, saiba ou não, queira ou não, ela é cúmplice. Denúncias de um tal tipo, talvez, consigam convencê-la de que, em contexto idêntico ao que descreve o evangelho para a sua conduta, um camelo não passa pelo buraco de uma agulha.
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